domingo, 16 de dezembro de 2012

É o Fim do Mundo Como o Conhecemos (E Eu Me Sinto Bem)


~Conto 2


“Chamou Deus à luz Dia, e às trevas chamou Noite. Houve tarde e houve manhã, dia primeiro.”
Gênesis 1:5


Alek estava sentado em frente a sua televisão, em seu quarto, estático tal como a tela a sua frente. A transmissão havia sido interrompida abruptamente, após um longo adeus do principal âncora do canal. O anúncio havia acabado, mas ainda se repetia na cabeça do rapaz.
            -Meus caros e minhas caras – o jornalista começara, o suor pingando de seu rosto, sua fronte tensa como jamais vista antes pelos telespectadores -, trabalho neste jornal há dezoito anos, e sempre me comprometi em manter minha aliança à verdade e honestidade acima de tudo. Assim sendo, asseguro-lhes que nunca divulgaria uma informação sem plena certeza de sua credibilidade. – Ele parou, aparentemente incapaz de prosseguir – Isto implica também que tenho a responsabilidade de não omitir nenhum fato. – Ele abaixou a cabeça, respirando fundo e, quando ergueu os olhos novamente, estes estavam cheios de lágrimas. – Cientistas da NASA acabaram de anunciar oficialmente que o Sol iniciou um inesperado e incontrolável rompante de explosões, de natureza inexplicável. A radiação... As explosões são... De forma que os cientistas esperam uma explosão... Quando isto acontecer, teremos cerca de vinte minutos até que a explosão nos alcance.
            Os vazios na memória de Alek eram intransponíveis – em grande parte porque ele não fazia questão de se lembrar do que o homem dissera. Era informação demais para absorver. Era caótico e grandioso demais para se apreender.
            Era o fim.

(leia o restante abaixo)

sexta-feira, 17 de agosto de 2012

"Todas estas coisas que eu fiz".

Eu não sou muito fã de Titanic. Suporto, é um filme legal, mas me irrito com ele em algumas partes.

De cara, poderia comentar o número de vezes que Rose chama Jack e Jack chama a flor dele. Tudo bem, era uma situação realmente desesperadora, mas... Sei lá. Chame com apelidos carinhosos, ou crie um epíteto forte (O Maravilhoso Jack, O Poderoso Jack, O “Estranhoso-Mundo-de-Jack”). Use a criatividade, pronomes existem por uma razão.

Também me irrito com a cena (alerta de spoilers para quem tem menos de dez anos. E que não viu o relançamento em 3D. E que não tem SBT em casa) que ele morre. Sei que é lugar-comum, mas isso não torna menos verdade um fato: cabiam os dois naquela porta.

De qualquer forma, não é nesse ponto que eu quero chegar (se é que alguma vez quis chegar em algu—Nossa, dejà vu). O que me ponho a imaginar com freqüência é: o que raios pensava Jack enquanto percebia que ia morrer? Quais foram os pensamentos que o aqueceram antes de ele... Bem, congelar?

Em outras palavras, o que Jack pensou quando, de alguma forma, alugou e assistiu Titanic?


Ele pode ter pensado em o quanto ele gostaria de continuar vivendo apenas para ter Rose do lado dele. Pensou o quanto queria que aquela porta coubesse os dois (...) simplesmente para que eles pudessem sobreviver e serem resgatados, e levados ao continente para construírem uma família juntos, e terem filhos juntos. “Ah, Rose. Como eu gostaria de poder chamar seu nome mais trinta mil vezes até a voz me fugir dos lábios e as lembranças da minha mente. Lembra aquela vez que estávamos nos amando num navio e ele acertou um cubo de gelo no meio de uma infinidade aquática?” Eles ririam. “Deus, qual era a probabilidade disso acontecer?” Será que quando ele reviu a vida dele foi a imagem de Rose que lhe foi evocada? Será que quando ele assistiu Titanic foi Rose que ele viu?

Talvez não. Talvez ele fosse como eu, e enquanto ele assistia Titanic, e se via congelar e afundar azuladamente até o fundo do mar, ele pensou em tudo o que ele não tinha feito. Talvez tenha refletido como ele poderia ter sido um grande desenhista, ou pintor, ou escultor. Como ele poderia ter retratado tantas outras garotas francesas, e quando, num golpe de sorte, um grande aristocrata visse sua arte e o contratasse para retratar toda a sua família. Ele então teria seu trabalho reconhecido, e não mais teria de viajar clandestinamente em navios que “nem Deus afunda”. “Esta eu chamo de ‘Madame Rose’”, ele diria, apontando orgulhosamente para sua nova obra de arte. “É sobre uma mulher que conheci uma vez, que me obrigou a escolher entre minha arte e meu amor por ela”, e ele falaria isso olhando para o chão, com os olhos pesados com mil quilos de lembranças, “e, bem, cá estou eu”. Dariam sorrisos solidários para ele e o aplaudiriam.

Tudo isso se o navio simplesmente tivesse navegado em qualquer direção para longe daquele proporcionalmente insignificante cubo de gelo – ou se ele simplesmente não tivesse entrado no navio para começar. Tão perto e tão longe.

Oh, Jack...

Mas imagino que, de qualquer forma, Jack teria desligado o projetor com um incômodo dentro de si, como uma coceira num lugar que não se pode alcançar, algo que o impelia a sair dali correndo num rompante desgovernado, encontrar Rose e ser um grande artista antes que sua vida encontrasse um iceberg.

Imagino que, qualquer que tenha sido a ambição perdida de Jack, ele teria uma sensação muito clara de que a vida é curta, e que não somos super-heróis. Imagino que ele teria percebido que, se um cubo de gelo no meio do nada poderia afundar o navio mais avançado da época como se fosse feito de papel, talvez ele mesmo não fosse durar tanto quanto ele imaginou. Ele morderia os lábios com nervosismo, olharia para os lados, passaria a mão pelo cabelo, levantaria do sofá e iria ligar para Rose, ou desenhar alguma coisa.

Porque a verdade é que somos Titanics e, por mais que tentemos, dificilmente veremos o iceberg se aproximando. A única certeza é que ele vai chegar. Todo o nosso esforço talvez devesse se concentrar em fazer o que precisamos fazer, equilibrando o que queremos fazer com o que devemos, e alcançar a plenitude do que foi planejado para nós, e por nós.

               Tudo isto para, quando a banda começar a trocar olhares de adeus entre si e tocar “Mais Perto Quero Estar” em seus violinos, nossas memórias e conquistas, grandes e pequenas, sejam a mão de Rose e o adeus que congela o sorriso em nossos rostos. 

quinta-feira, 9 de agosto de 2012

Você só vive uma vez.

Não sei você, mas eu tenho uma mania impertinente de me levar muito a sério.

De tempos em tempos me pego pensando o quanto me afetou uma piada feita, fico pensando em coisas que eu disse cinco anos atrás, montando quebra-cabeças e filosofando sobre copos meio cheios ou meio vazios.

E, de tempos em tempos, eu percebo que isso pode ser meio imbecil.

"What the hell?!"


Não estou sendo contraditório nem estou com múltiplas personalidades (ou estou sim. Na verdade, não estou sim): continuo achando que a reflexão é uma ótima forma (se não a única) de se olhar para dentro e ver onde estamos errando, onde saímos do caminho planejado (aqui no sentido pejorativo, embora isso não seja uma regra. Afinal, tem dias que acordamos e simplesmente temos asco do caminho planejado e vamos fazer algo novo. Espontaneidade é um grande analgésico para a vida de gado da atualidade) e reajustar o alvo quando necessário.

Não é que pensar seja ruim. É o pensar demais, o "overthink" que é ruim - e eu aposto que causa câncer (afinal de contas, o que não causa hoje em dia?). Acho que o necessário da reflexão se restringe a análise de causa e consequência, e o evitar de repetições vãs que nos fazem andar em círculos concêntricos por toda a vida.

Alguém me disse uma vez que o conhecimento da causa elimina a consequência. Eu discordo. O conhecimento de causa por vezes elimina a consequência, e por outras vezes simplesmente te ensina a lidar com ela. Afinal, "o sol nasce para todos, e a noite a todos cobrirá".

Eu penso que é preciso (saber viver?), entretanto, saber diferenciar quais são as reflexões necessárias, aquelas que realmente mudarão nossa vida e nos levarão a algum lugar. Outras reflexões já deixaram de ser reflexões para se tornar um tormento caleidoscópico de memórias que batem e voltam e que não fazem nada a não ser... Bem, bater. Existe uma grande diferença entre reflexão e remoer pensamentos como cães a um osso.

Ouviu, autor?

O que estou dizendo é que tão importante quanto refletir sobre os erros e acertos cometidos é saber diferenciar reflexão de remorso. Só assim se pode vivenciar o que ainda há de haver, e não viver de coisas vividas. Afinal, você só vive uma vez.

sábado, 4 de agosto de 2012

Jogo de sombras.

Não sei você, mas eu adorava brincar com sombras quando eu era menor. Eu ficava em frente à uma lanterna (concordo que brincar em frente de velas seria mais charmoso, mas a) Eu não tive muitas oportunidades de brincar com velas e b) Eu mal consigo andar sem tropeçar. Eu com qualquer coisa que envolva fogo é uma potencial ameaça) e fazia formas simples: um coelho, um cachorro, uma pomba. Aquilo me distraía durante alguns minutos.

Durante aqueles minutos, eu fingia ver coisas que não estavam ali, mas que somente suas ideias já serviam para me divertir.

E provavelmente agora você já sabe onde estou indo - se é que algum dia quis ir à algum lugar.



Eu cresci e meu quarto escuro mudou. De ipsis litteris, meu quarto escuro se transformou numa conjunção descoordenada de coisas que tinham de ser feitas, metas que têm de ser cumpridas, sonhos e vontades que têm de ser colocados de lado, amizades e faltas que têm de se esquecer e fingir que nunca aconteceram, apenas para que este quarto escuro formado por elas não te traguem. É aquele momento no qual o quarto escuro se forma ao redor de você e ameaça te tragar.

Resolvi acender uma lanterna. "Que raios você quer dizer com isso, Erik?". Nada. Mas se eu quisesse ser instigante, eu poderia dizer que quero dizer alguma coisa. Se eu quisesse ser misterioso, poderia dizer que talvez algo, talvez nada. Se quisesse confundi-lo, poderia dizer que algo que eu disse nada quis dizer se não o que eu disse - e que fique o dito pelo não dito. Se eu quisesse ser incompleto poderia dizer que...

O fato é que uma lanterna foi acesa. Uma lanterna pode vir na forma de estudos, amores, projetos (ou, quem sabe, um blog bobo). Qualquer coisa que seja o suficiente para lhe tirar do torpor da escuridão. Qualquer coisa que seja capaz de lhe despertar de uma noite sem estrelas.

Qualquer coisa que te jogue uma luz.

Uma vez que o feixe de luz é lançado numa direção, brincar com ele e manipula-lo são estorvos necessários para que seus efeitos sejam alcançados. A luz, por si só, ilumina e desafoga, mas não distrai. Você pode ter uma lanterna na sua mão, mas, caramba, você ainda sabe que está mergulhado num quarto escuro.

Então você escreve textos, pinta quadros, dança balé, qualquer coisa que lance uma sombra a sua frente. Algo que seja diferente o suficiente para lhe dar uma distração, te mostrar que a vida é mais que o status quo, mais que o casa-trabalho-escola, mais que nascer-crescer-reproduzir-morrer - mas nada definido, nada que realmente lhe tire do quarto escuro.

Brincar com sombras é fingir que você está em um lugar melhor do que o lugar que você está agora, e ignorar o fato de que você só está naquele lugar agora porque lhe falta a coragem de sair dali. É comodismo. É procrastinar. É covardia (não se sinta ofendido. Todos os adjetivos, antes de serem dirigidos a quem cabem, passam pela minha boca, e pelos meus ouvidos, e eu os recebo de braços abertos como velhos amigos feitos de navalha).

Brincar de sombras é saber que você é capaz de simplesmente levantar do chão e sair daquele lugar, ou PELO AMOR DE DEUS, acender uma lâmpada - ainda assim, é tão mais fácil me contentar com o escuro e brincar de sombras...

É muito melhor não correr riscos e apenas contemplar as incertezas. Só que não.

As sombras pueris nunca serão nada mais do que imagens incertas de coisas inexistentes. Talvez seja a hora de desligar a lanterna e acender o sol.

Está terminando de anoitecer (lá fora ou aqui dentro?), e talvez seja hora de finalmente eu acender a luz.


domingo, 29 de julho de 2012

Vivo por ela.

Não me lembro mais como conheci o amor da minha vida.

Embora isso me assuste um pouco, também ressalta o fato de que nossa história se mesclou ao próprio amor, e o passado e o presente se fundiram ante a perspectiva do futuro. Eu a amo, e para mim isto basta.

Me lembro que minha mãe me apresentou a ela. Me aproximei, tímido, como sempre, mas não demorou mais do que alguns dias para que ela se tornasse minha melhor (e por vezes, única) amiga, confidente, amante.

Brigamos muitas vezes também. Eu sentia que não correspondia às suas expectativas, e, 'inda hoje, sei que não sou bom o suficiente para ela. Admito isto com franqueza, sem problema; se ela me dá o prazer de compartilhar com ela e nela tudo o que eu tenho dentro de mim; se ela me deixa mostrar o meu melhor e meu pior; se somente com ela, sozinhos, eu sou realmente eu, despido de qualquer máscara, qualquer hipérbole ou qualquer fuga; se somente com ela eu me sinto limpo, me sinto eu... Se é desta forma que eu me sinto completo, nada mais importa. Não importa se sou bom o suficiente, não importa se sou imperfeito, não importa se nunca conseguirei ser o que deveria.

O que importa é ela, e eu junto à ela, nela, para todo sempre, enquanto meu sempre durar.

Ainda assim, com ela, o eterno parece realmente durar para sempre. Ela me inspira, me revolve, me fere, me envolve, me eleva e me enleva. Ela me apaixona e se apaixona por si, apenas para que, em metalinguagem, ela me tenha ainda mais.

Sonho com ela quando estou acordado, e penso nela em meus sonhos. Da hora que me levanto até o momento de dormir, estou pensando em suas nuances, em o que outros já fizeram com ela, e a recrio ininterruptamente assim.

"Cada dia é uma conquista; a protagonista é ela também."

Pois a música é assim: quando lhe toma de assalto, lhe toma em corpo, alma e mente. Lhe queima dos pés a cabeça, engradece e te amiúda, apenas para lhe mostrar o quão maior que qualquer ser humano ela é. É a musa dos sonhos que ela mesma inspira.

A música é uma faísca em um palheiro, mais do que se sonha e, em vários momentos, exatamente do que se precisa. A música é fogo que arde sem se ver, é ferida que dói e se sente - Deus, e como se sente...

A música é amor que acalenta, paixão que incendeia e vida que pulsa, e a vida sem ela é um poço seco.

E então, quando for a hora, desliguem as luzes, fechem as cortinas, e deixe que o fôlego se esvaia como um último lá menor que morre no silêncio.

Pois do acorde viemos, e à harmonia voltaremos.


quinta-feira, 26 de julho de 2012

Cidade das luzes brilhantes.


~Conto 1
           -Faz frio aqui.
            -Você fala como se fosse novidade.
            -E você fala como se não sentisse.
            A segunda olhou para a primeira com o canto do olho, sem se dignar a mover-se.
            -Lá se vai Madame Gertaux. – continuou a segunda – Olhe que vestido maravilhoso ela está usando!
            -Não gostei.
            -Ah, Madame Roches! Faça-me o favor. Isso tudo é só inveja?
            -Não é uma questão de inveja. É questão de princípios. Nós duas sabemos dos homens de onde veio o dinheiro para esse vestido. E nós duas sabemos quantas pessoas poderiam escapar à morte apenas com metade do pano que o compõe.
            As duas estavam à beira da rua, fazendo o que lhes restava fazer: assistir a vida dos outros e a própria escorrendo e congelando. O vento varria as ruas parisienses, e a cidade reluzia às vésperas do Natal. Tons de vermelho, verde e dourado da festividade contrastavam com as nuances de cinza já intrínsecas a paisagem da cidade. Cavalos trotavam carregando gordos carroceiros, cheios de mercadorias, especiarias e alimentos especiais para as mesas dos abastados; velhas imploravam por moedas, os rostos secos com lágrimas outrora molhadas, agora congeladas pelo frio.
            -Quem morreu, morreu. – retrucou a segunda – Nada se há a fazer. Que haja algum lucro nisso pelo menos.
            -Sabe, Madame Sansvie, me pego me perguntando várias vezes se há qualquer sentimento dentro de você.
            -Defina sentimento. – provocou Sansvie – Eu tenho perspectiva de um futuro com mais glamour do que continuar estagnada ao seu lado.
            -Aprenda a andar primeiro, sua prepotente – rosnou Madame Roches – e depois cogite fugir de mim.
            Sansvie permaneceu em silêncio por um tempo, limitando-se a encarar o espaço a sua frente, até finalmente responder.
            -Não sei como você consegue manter sentimentos, levando uma vida como a nossa.
            Foi a vez de Roches pensar antes de retrucar.
            -Não é uma questão de sentir ou não. É uma questão de se deixar atingir.
            -Você vê tanto quanto eu o modo que eles nos olham, Roches. – vociferou Sansvie. Sua voz transparecia uma mágoa guardada há muito tempo. – Você vê o desprezo por nós. O amargo lembrete de que a vida perfeita deles não é tão perfeita assim, porque nós somos o espinho na carne deles. O incômodo. O câncer na vida da bela Paris!
            Sansvie berrava agora. A ironia é que ninguém sequer virou o rosto em sua direção, como que comprovando o que ela acabara rasgar aos céus europeus.
            Ela riu. Um riso triste, seco, amargurado.
            -Viu? Está vendo? Não há o que sentir. Não há o que valha a pena sentir. Não por isso.
            Ela ainda estava imóvel, embora Roches pudesse senti-la tremendo por dentro, com a mais pura dor.
            -A questão não é sentir ou não, Sansvie. – Ela respondeu, mirando o infinito. – A questão é quanto você se deixa atingir. Sua alma é sempre tão frágil quanto você acredita. Há uma grande diferença entre ter um coração de pedra e não ter coração algum.
           
Elas ouviram alguém subindo as escadas, e logo cessaram a conversa. Um homem de vestes simples adentrou o campanário, tocando o sino riquíssimo com as costas da mão, e se dirigiu à janela leste do lugar, de onde jurara ter ouvido vozes. Aproximou-se do peitoril, esticando a cabeça para fora, para ver a Cidade das Luzes em toda a sua glória e desgraça.
            Olhou para as duas gárgulas gigantescas que podiam ser vistas à distância, e sorriu. Algo na expressão delas às vezes parecia lhe dizer que elas eram mais humanas do que ele mesmo.





domingo, 22 de julho de 2012

O cientista.

Comecei com um vidro translúcido, quase um espelho.

Eu sabia a imagem que eu tinha de montar, então me pus a fazê-la. À minha frente, pequenas imagens, vídeos, sentimentos e sensações de outrora. Respirei fundo e me debrucei sobre o trabalho.

Ele tinha catorze anos e recebeu um tapa no rosto, forte, pesado, daqueles que se ouve o som antes de ver o impacto. Coloquei a imagem de lado por um instante.

Um garoto tinha caído no chão, correndo sozinho pela rua. Ele se levantava, devagar, o joelho e os cotovelos sangrando, ninguém para ajudá-lo. Afinal de contas, estava correndo sozinho na rua. Coloquei essa peça no canto esquerdo.

Uma menina loira me chamou atenção. Tinha um nome amado e um sorriso que refulgia em inocência como estalactites. Ela chorava copiosamente. Havia mais algumas da mesma forma. Coloquei suas imagens na base.

Encontrei uma foto do Neil Gaiman e a pus no canto superior direito.

Achei imagens de livros e mais livros. Joguei todas fora. Logo abaixo delas encontrei uma imagem em branco, como uma folha de papel. Coloquei-a perto do centro.

Vários vídeos me perturbaram. Em um deles, um rapaz combinava de encontrar uma moça. Ele nunca apareceu, e ela esperava por ele, primeiro em pé, depois sentada nos degraus. O que mais doía era o fato de que nunca precisei rebobinar o vídeo; era extenso, durava horas. Quando começou a chover e a garota começou a chorar, não consegui mais assistir.

Noutro, dois amigos andavam por cinco quadras. A menina tentava falar algo para o menino, mas aparentemente não conseguia. Ainda assim, por algum motivo a mim desconhecido, ele estava sorrindo. Gostei daquela imagem e a lancei em meu quadro.

Vi uma foto, de um garoto com sorriso amarelo numa estação de ônibus suja. Tinha uma mala enorme do seu lado, e parecia que podia colocar-se dentro dela com facilidade. Sua expressão tentava passar segurança e bom humor, embora sua insegurança e desespero fossem evidentes. Coloquei aquela foto perto do centro da imagem.

E assim fui montando o quebra-cabeças. Eram pedaços de vidro, lâminas de teste sanguíneo que, apesar de terapêuticas, como boas lâminas que eram, me cortavam em doses homeopáticas. Como sanguessugas, o verter de sangue vertia impurezas e vertia lágrimas, revertendo efeitos intoxicantes de lembranças recentes e venenos vorazes de vidas vedadas. Como naquele filme "Algum Lugar do Passado", ou "Efeito Borboleta". Ou "Minority Report".

Tentei inverter algumas imagens, porém mesmo o negativo delas me fazia ver o efeito positivo que, aliadas ao tempo, elas me trouxeram. Tentei retroceder alguns vídeos, mas nenhum deles se permitiu ser repetido. Eram orgulhosos e diziam ser únicos e irredutíveis; diziam que não voltavam atrás.

Montei assim este painel, uma cacofonia de cacos cortantes, cornucópia de cores cinzentas, caleidoscópio de carências cruas. Montei todo o painel, exceto pelo círculo central, que, escuro, me chamava, e implorava por somente uma peça que faltava.

Tirei do paletó um relógio de bolso e o abri. Ele era lindo, e os ponteiros eram feitos de relâmpagos. Era o tempo trazendo luz. Pus o relógio no centro da imagem.

Lentamente as bordas se iluminaram e se fundiram, transformando-se de peças irregulares numa grande tela, numa única imagem, consonante e precisa.

Terminei com um vidro polido e emoldurado. Era um espelho.