domingo, 22 de julho de 2012

O cientista.

Comecei com um vidro translúcido, quase um espelho.

Eu sabia a imagem que eu tinha de montar, então me pus a fazê-la. À minha frente, pequenas imagens, vídeos, sentimentos e sensações de outrora. Respirei fundo e me debrucei sobre o trabalho.

Ele tinha catorze anos e recebeu um tapa no rosto, forte, pesado, daqueles que se ouve o som antes de ver o impacto. Coloquei a imagem de lado por um instante.

Um garoto tinha caído no chão, correndo sozinho pela rua. Ele se levantava, devagar, o joelho e os cotovelos sangrando, ninguém para ajudá-lo. Afinal de contas, estava correndo sozinho na rua. Coloquei essa peça no canto esquerdo.

Uma menina loira me chamou atenção. Tinha um nome amado e um sorriso que refulgia em inocência como estalactites. Ela chorava copiosamente. Havia mais algumas da mesma forma. Coloquei suas imagens na base.

Encontrei uma foto do Neil Gaiman e a pus no canto superior direito.

Achei imagens de livros e mais livros. Joguei todas fora. Logo abaixo delas encontrei uma imagem em branco, como uma folha de papel. Coloquei-a perto do centro.

Vários vídeos me perturbaram. Em um deles, um rapaz combinava de encontrar uma moça. Ele nunca apareceu, e ela esperava por ele, primeiro em pé, depois sentada nos degraus. O que mais doía era o fato de que nunca precisei rebobinar o vídeo; era extenso, durava horas. Quando começou a chover e a garota começou a chorar, não consegui mais assistir.

Noutro, dois amigos andavam por cinco quadras. A menina tentava falar algo para o menino, mas aparentemente não conseguia. Ainda assim, por algum motivo a mim desconhecido, ele estava sorrindo. Gostei daquela imagem e a lancei em meu quadro.

Vi uma foto, de um garoto com sorriso amarelo numa estação de ônibus suja. Tinha uma mala enorme do seu lado, e parecia que podia colocar-se dentro dela com facilidade. Sua expressão tentava passar segurança e bom humor, embora sua insegurança e desespero fossem evidentes. Coloquei aquela foto perto do centro da imagem.

E assim fui montando o quebra-cabeças. Eram pedaços de vidro, lâminas de teste sanguíneo que, apesar de terapêuticas, como boas lâminas que eram, me cortavam em doses homeopáticas. Como sanguessugas, o verter de sangue vertia impurezas e vertia lágrimas, revertendo efeitos intoxicantes de lembranças recentes e venenos vorazes de vidas vedadas. Como naquele filme "Algum Lugar do Passado", ou "Efeito Borboleta". Ou "Minority Report".

Tentei inverter algumas imagens, porém mesmo o negativo delas me fazia ver o efeito positivo que, aliadas ao tempo, elas me trouxeram. Tentei retroceder alguns vídeos, mas nenhum deles se permitiu ser repetido. Eram orgulhosos e diziam ser únicos e irredutíveis; diziam que não voltavam atrás.

Montei assim este painel, uma cacofonia de cacos cortantes, cornucópia de cores cinzentas, caleidoscópio de carências cruas. Montei todo o painel, exceto pelo círculo central, que, escuro, me chamava, e implorava por somente uma peça que faltava.

Tirei do paletó um relógio de bolso e o abri. Ele era lindo, e os ponteiros eram feitos de relâmpagos. Era o tempo trazendo luz. Pus o relógio no centro da imagem.

Lentamente as bordas se iluminaram e se fundiram, transformando-se de peças irregulares numa grande tela, numa única imagem, consonante e precisa.

Terminei com um vidro polido e emoldurado. Era um espelho.


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