~Conto 1
-Faz frio aqui.
-Você
fala como se fosse novidade.
-E
você fala como se não sentisse.
A
segunda olhou para a primeira com o canto do olho, sem se dignar a mover-se.
-Lá
se vai Madame Gertaux. – continuou a segunda – Olhe que vestido maravilhoso ela
está usando!
-Não
gostei.
-Ah,
Madame Roches! Faça-me o favor. Isso tudo é só inveja?
-Não
é uma questão de inveja. É questão de princípios. Nós duas sabemos dos homens
de onde veio o dinheiro para esse vestido. E nós duas sabemos quantas pessoas poderiam
escapar à morte apenas com metade do pano que o compõe.
As
duas estavam à beira da rua, fazendo o que lhes restava fazer: assistir a vida
dos outros e a própria escorrendo e congelando. O vento varria as ruas
parisienses, e a cidade reluzia às vésperas do Natal. Tons de vermelho, verde e
dourado da festividade contrastavam com as nuances de cinza já intrínsecas a
paisagem da cidade. Cavalos trotavam carregando gordos carroceiros, cheios de
mercadorias, especiarias e alimentos especiais para as mesas dos abastados;
velhas imploravam por moedas, os rostos secos com lágrimas outrora molhadas,
agora congeladas pelo frio.
-Quem
morreu, morreu. – retrucou a segunda – Nada se há a fazer. Que haja algum lucro
nisso pelo menos.
-Sabe,
Madame Sansvie, me pego me perguntando várias vezes se há qualquer sentimento
dentro de você.
-Defina
sentimento. – provocou Sansvie – Eu tenho perspectiva de um futuro com mais
glamour do que continuar estagnada ao seu lado.
-Aprenda
a andar primeiro, sua prepotente – rosnou Madame Roches – e depois cogite fugir
de mim.
Sansvie
permaneceu em silêncio por um tempo, limitando-se a encarar o espaço a sua
frente, até finalmente responder.
-Não
sei como você consegue manter sentimentos, levando uma vida como a nossa.
Foi
a vez de Roches pensar antes de retrucar.
-Não
é uma questão de sentir ou não. É uma questão de se deixar atingir.
-Você
vê tanto quanto eu o modo que eles nos olham, Roches. – vociferou Sansvie. Sua
voz transparecia uma mágoa guardada há muito tempo. – Você vê o desprezo por
nós. O amargo lembrete de que a vida perfeita deles não é tão perfeita assim,
porque nós somos o espinho na carne deles. O incômodo. O câncer na vida da bela
Paris!
Sansvie
berrava agora. A ironia é que ninguém sequer virou o rosto em sua direção, como
que comprovando o que ela acabara rasgar aos céus europeus.
Ela
riu. Um riso triste, seco, amargurado.
-Viu?
Está vendo? Não há o que sentir. Não há o que valha a pena sentir. Não por isso.
Ela
ainda estava imóvel, embora Roches pudesse senti-la tremendo por dentro, com a
mais pura dor.
-A
questão não é sentir ou não, Sansvie. – Ela respondeu, mirando o infinito. – A
questão é quanto você se deixa atingir. Sua alma é sempre tão frágil quanto
você acredita. Há uma grande diferença entre ter um coração de pedra e não ter
coração algum.
Elas ouviram alguém subindo as escadas, e logo
cessaram a conversa. Um homem de vestes simples adentrou o campanário, tocando
o sino riquíssimo com as costas da mão, e se dirigiu à janela leste do lugar,
de onde jurara ter ouvido vozes. Aproximou-se do peitoril, esticando a cabeça
para fora, para ver a Cidade das Luzes em toda a sua glória e desgraça.
Olhou
para as duas gárgulas gigantescas que podiam ser vistas à distância, e sorriu.
Algo na expressão delas às vezes parecia lhe dizer que elas eram mais humanas
do que ele mesmo.
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